Vim de um curso, e a coisa mais interessante que ouvi foi “é legal um linguísta falar da língua, mostrar que há análises sintáticas alternativas”. Foi bom, mas, ao mesmo tempo, uma declaração como essa significa que ninguém sabe o que a linguística faz. O que se supõe é que a linguística é aquele resumo meio besta que se faz por aí, seja de Ferdinand de Saussure, seja de Noam Chomsky. Coisas como redizer as dicotomias (língua/fala ou competência/performance), sem dar-se conta de que essas categorias têm que ver exatamente com a língua!
Muita gente reduz Saussure a seu pedaço, digamos, filosófico: o signo é arbitrário. Mas parece que ninguém lê as páginas dele sobre fonologia ou morfologia. Curioso, muito curioso. Mas é isso que faz com que muitos cursos de Letras tenham disciplinas de Linguística sem que elas afetem as aulas de Língua Portuguesa dadas no horário seguinte.
Ora, a linguística está para a gramática exatamente como Galileu está para Aristóteles. Ou seja, propõe outras tantas teorias que competem entre si para ver qual explica melhor as línguas, ou uma língua — uma oração, uma sílaba, um fonema (e não apenas a linguagem, essa capacidade humana). Mas a maioria dos leitores de Chomsky (não entre os lingüistas, claro) lê só os pedaços dos livros dele que falam de inatismo. É que ler os outros capítulos, os que exigem domínio da metalinguagem, ou, mais ainda, que o leitor aceite que sejam ameaçados os pífios conhecimentos de gramática escolar que ele tem, dá dor de cabeça.
Lembrei isso ao ler o texto de Marcelo Gleiser no caderno MAIS! de 29/01/2006. Cheguei a acreditar que posso fazer com esse texto o que muita gente faz com Chomsky ou com outros autores (já ouvi de um intelectual que o que interessava saber de Foucault era que ele discute o poder!!! — o que me lembrou da piada de Woody Alen sobre leitura dinâmica: “li Guerra e Paz em quatro horas — é sobre a Rússia”).
Voltando ao tema: lendo Gleiser, lembrei das leituras de Saussure e de Chomsky que se fazem por aí, por duas razões. Uma é que ele me permite fazer de conta que consigo entender um dos profundos problemas dos físicos, para o qual eles estão bolando soluções plausíveis. Outra é que, entendendo ou fazendo de conta que entendo desse grande problema, posso me dispensar de aprender física!
As explicações mencionadas por Gleiser para o tal problema ficam parecidas com a explicação inatista de Chomsky. Diz ele que se sabe desde 1929 que as galáxias se afastam umas das outras em velocidades que aumentam progressivamente e que, desde 1998, sabe-se que essa expansão é mais rápida do que se pensava (e usa imagens do quotidiano que tornam o fenômeno inteligível).
O que mais me interessou foi uma teoria para explicar a aceleração da expansão do universo. Se ela aumenta de velocidade, alguma força deve estar empurrando as galáxias. A hipótese é que ela se deva a uma energia “escura”, assim chamada porque não é visível, vejam só. Há dois candidatos para a vaga: ou é a “constante cosmológica”, cuja origem é bem sutil (pode ser causada por minúsculas flutuações de energia que ocorrem no vácuo), ou é um novo tipo de matéria exótica, chamada quintessência (Gleiser diz que lembra a teoria do éter de Aristóteles...), que seria capaz de produzir a energia que nutre a expansão.
Ora, a postulação dessas forças lembra muito a do inatismo. Principalmente porque é impressionante a rapidez com que os gerativistas passam de um dado ordenado para a afirmação de que não há outra explicação para a tal regra a não ser o inatismo. Eles poderiam ser mais imaginativos, imitando os físicos.
Mas o que eu queria mesmo dizer é que, lendo Gleiser por dois ou três finais de semana seguidos, eu já poderia discutir física... em um bar. Desde que eu me contentasse em discutir física como se discute linguística por aí. Sem entrar nela, e sem ter que aprender o ofício.
Texto de Sírio Possenti (UNICAMP).
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